terça-feira, 26 de outubro de 2010

O pesar suave das horas

Monet 



Ele tinha um pequeno barco a motor onde costumava deixar-se levar pelas águas enquanto pescava. Era calmo como o nascer do sol. No começo, passava os dias a deriva, mas retornava à aldeia assim que a noite desse seus primeiros sinais. Vez ou outra viajava por três ou quatro dias.
Tinha uma esposa atenciosa, onde sempre pôde atracar seu cansaço com suavidade. 
Não tiveram filhos. Talvez por medo de não conseguir partir. Sem partida não há regresso. Não há saudade. Não há o sorriso doce da mulher ao ouvir seus passos próximos a porta. Não era belo, ela tampouco, no entanto trazia nos olhos o brilho da satisfação. Ou era o mar refletindo a neles. 

Em uma peça nos fundos do quintal, guardava sua maior riqueza:  livros amarelados pelo tempo. Posicionava-os numa prateleira de madeira escura e pouco delicada. Eram tantos e tão amados! Passava horas naquele cômodo onde pendurava um lampião em um arame preso na madeira bruta, cheia de farpas. Quando saia de viagem escolhia 3 obras com assuntos variados para ler paralelamente. Depois que lia, deixava-os no barco. Na viagem seguinte, traria 3 outros. E assim seguiam os dias.

Ao chegar em casa, num final de tarde deparou-se com a casa silenciosa, as luzes apagadas. Chamou pela esposa mas nada ouviu de  resposta. Encaminhou-se até o quarto e lá estava ela. Os cabelos soltos no travesseiro, a mão esquerda debaixo do rosto. Respirou fundo e pisando leve dirigiu-se a ela tentando não fazer qualquer ruido. Retirou os sapatos e com cuidado deitou-se ao seu lado. Passou a mão no seu rosto, a pele tão macia estava fria. Não respirava nem o coração batia. 

Ajoelhado ao lado da cama e aos prantos cobriu-a.
-Tu vais ficar resfriada - murmurou.

Calçou os sapatos, as lágrimas teimando em rolar, não obedeciam. Juntou todos os livros, colocou-os no barco e nunca mais houve o regresso. 


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